ÊSTES
CONSTRUÍRAM
BRASÍLIA
UMA (ANTI)CELEBRAÇÃO CRÍTICA DOS 60 ANOS DA CAPITAL BRASILEIRA
Desenvolvido no contexto do 60º aniversário da inauguração de Brasília, o projeto de investigação aqui apresentado faz uma retomada desse símbolo central do imaginário cultural brasileiro. Nessa retomada, guia-se por duas noções principais: a de que Brasília já surgiu como sua própria ruína e a de que a permanência desse estado arruinado, fissurado entre o ideário e a realidade, configura-se como uma espécie de insônia. Através dessas orientações da ruína e da insônia, este trabalho apropria-se de Brasília em três aspectos: a propaganda ideológica, a memória afetiva e a paisagem sonora. Para isso, utiliza ferramentas digitais com as quais reorganiza e manipula áudios, imagens e textos que compõem o imaginário ao redor da capital brasileira, valendo-se da noção de apropriação como prática cultural típica da cultura digital e da experiência moderna e pós-moderna. O projeto deu origem a uma publicação online que procura constituir um modo sensível de acesso ao imaginário que compõe o símbolo-Brasília, mantendo em evidência as perturbações que afetam a sua idealização.
“Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu.(...) Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização.
No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. (...) Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome do que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa.
LISPECTOR, 1970
Os candangos foram os operários da construção de Brasília que, muitas vezes acompanhados de suas companheiras e demais familiares, que migraram para o planalto central partindo de diversas regiões do país, especialmente do Nordeste, Minas Gerais e Goiás. A mão de obra para a construção da cidade foi conseguida através de uma enorme campanha de recrutamento por parte do governo focada nas regiões mais pobres do país, onde as pessoas eram então recolhidas e levadas em caminhões em direção ao que seria – graças a eles – a nova capital nacional.
Imagem: Marcel Gautherot. Brasília, 1959. Acervo IMS.
Para poupar o tempo de deslocamento, suas moradias eram construídas próximas ao local em que estavam trabalhando, sobre solo que logo também precisaria se tornar canteiro de obras. Tão logo uma parte da obra fosse concluída, tratores passavam demolindo os alojamentos para abrir terreno para a continuidade da construção da cidade oficial e os trabalhadores tinham que reerguer suas casas um pouco mais adiante.
Imagem: Autor desconhecido, c. 1960. Acervo ARPDF
Efetivamente, o projeto de vida digna em Brasília não contemplava as vidas de quem a construía. As 1520 casas construídas pela Fundação da Casa Popular e os quatro conjuntos habitacionais destinados a princípio ao trabalhador de menor renda acabaram ocupadas em sua maioria por funcionários públicos de média renda. Nesse território inóspito de clima difícil, a milhares de quilômetros de qualquer terra conhecida, foram os próprios candangos que tiveram de construir os seus alojamentos, aproveitando o refugo dos materiais utilizados para a construção dos palácios do governo.
Imagem: Marcel Gautherot. Moradia nos arredores da cidade, Sacolândia, c.1959. Acervo IMS
Logo no início das obras, em 1957, Juscelino Kubitscheck cuidadosamente reencenou a primeira missa brasileira pós-descobrimento do território por Portugal – fato que é reconhecido pela história hegemônica “como o início dos processos civilizatórios na colônia”.
Se a construção de Brasília simbolizava o desejo por uma ruptura com o passado do país, com o seu atraso, com a sua submissão colonial, porque é que JK se apropriava do imaginário do violento processo de colonização brasileira para legitimar a fundação da nova capital?
O símbolo-Brasília, por tudo isso, foi fissurado por dentro. A cidade se ergueu no mundo sobre o desvirtuamento de seu próprio sentido.
Imagem: Carlos Mota (arcebispo de São Paulo), líder da tribo Karajá e o presidente Juscelino Kubitschek, na ocasião da primeira missa realizada em Brasília, 1957. Acervo SIAN.